Feminicídio: quais são os direitos de vítimas sobreviventes e de órfãos

A escalada de casos de feminicídio, ou de tentativas, no Brasil vem chocando a população pela violência extrema contra as mulheres. Casos como o de Tainara de Souza Santos, que foi arrastada por um carro pela marginal, escancara uma tragédia que vai muito além da esfera criminal e deixa no ar algumas perguntas. O que acontece com a família que fica destroçada? E com os filhos da vítima, que além do trauma, ainda tem de enfrentar os problemas para sobreviver?

Isso ganha contornos ainda mais sérios se olharmos para os dados do Mapa da Segurança Pública de 2025, do Ministério da Justiça e Segurança Pública, que indicam que 1.459 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2024, o que equivale a uma média de aproximadamente quatro mortes por dia. 

Para tentar esclarecer essas e outras questões dolorosas para essas famílias, o InfoMoney foi ouvir especialistas para saber quais são direitos desses sobreviventes para que consigam reconstruir a vida minimamente.

Quando uma mulher tem a vida brutalmente interrompida por agressões, ficam filhos sem amparo, pais perdidos e famílias desestruturadas, tendo de reconstruir a própria existência em meio ao trauma físico, psicológico e financeiro. Neste cenário, muitas pessoas sequer sabem que há direitos previdenciários e assistenciais que podem garantir um mínimo de proteção, de acordo com advogados.

Desde setembro deste ano, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) regulamentou a Lei 14.717 de 2023, que prevê que os filhos de vítimas de feminicídio deixem de precisar ir à Justiça para fazer pedidos para receber uma pensão especial. Agora, basta encaminhar requerimento pela via administrativa, diretamente no Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), com as devidas provas do caso. O objetivo é que os filhos de vítimas de feminicídio não sejam “revitimizados” ao precisarem judicializar o pedido para receber uma pensão que garanta sua sobrevivência.

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Essa pensão especial de natureza assistencial, criada pela lei, é paga pelo INSS e tem um valor de um salário mínimo mensal. É exclusivamente destinada aos órfãos menores de 18 anos filhos dessas vítimas. O ponto central é que esse benefício independe de contribuição previdenciária da mulher. O objetivo é impedir que crianças e adolescentes caiam em situação de vulnerabilidade social após a perda violenta da principal referência familiar, segundo a advogada previdenciária Nicole Lopes, do escritório Munhoz Advogado.

O valor do benefício é único, um salário-mínimo, que será dividido entre todos os filhos. Ou seja, se houver dois ou três dependentes, o valor é rateado entre eles. À medida que cada um atinge a maioridade, sua cota é redistribuída entre os irmãos que ainda têm direito por idade. Para ter acesso, a esse benefício, quem ficar com a tutela das crianças (sejam avós ou tios) pode fazer o pedido, desde que não tenha uma renda que ultrapasse a um quarto do salário-mínimo por pessoa da família. O cálculo considera todas as pessoas que vivem na mesma casa.

Na prática, isso significa que muitos avós que acabam se tornando responsáveis legais pelos netos e recebam aposentadorias, ainda podem ter direito ao benefício para manter as crianças, desde que comprovem os gastos mensais e se enquadrem no critério da renda per capita inferior ou igual a um quarto do salário-mínimo.

Fora da Justiça

O caminho para solicitar a pensão é administrativo: o pedido pode ser feito diretamente ao INSS pelo responsável legal da criança, por meio do aplicativo Meu INSS ou pelo telefone 135. A legislação permite que a concessão seja analisada com base em indícios, como o boletim de ocorrência, sem exigir a conclusão do processo criminal. Caso haja negativa, o direito pode ser discutido judicialmente.

Há, no entanto, uma distinção importante. Se a mulher assassinada ou ferida era segurada da Previdência, ou seja, tinha registro em carteira ou contribuia regularmente como autônoma, o benefício devido aos filhos tem de ser a pensão por morte tradicional, cujo valor depende das contribuições feitas ao longo da vida. A pensão especial criada para órfãos do feminicídio foi pensada justamente para os casos em que não havia vínculo previdenciário.

Quando a mulher sobrevive à violência, mas fica incapacitada, o cenário muda novamente. No caso de incapacidade permanente, como amputações ou sequelas irreversíveis, é possível solicitar aposentadoria por incapacidade permanente, desde que exista essa condição da segurada. Se a incapacidade for temporária, como em situações de agressão que exigem afastamento prolongado, o benefício pode ser equiparado ao auxílio por incapacidade temporária. Para mulheres que não contribuíam com o INSS, há a possibilidade de recorrer ao Benefício de Prestação Continuada (BPC) previsto na Lei Orgânica da Assistência Social (Loas), desde que comprovada a deficiência e a situação de vulnerabilidade econômica.

Protestos contra o feminicídio, no domingo 7 de dezembro, em Brasília (Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil)

Proteção

A Lei Maria da Penha também prevê proteção do vínculo trabalhista. Mulheres vítimas de violência doméstica podem se afastar do trabalho por até seis meses, com manutenção do emprego. Nos primeiros 15 dias, o pagamento é feito pela empresa; depois disso, o INSS assume, desde que a mulher seja segurada. Apesar de a previsão legal existir, a falta de regulamentação ainda gera insegurança e dúvidas, o que muitas vezes obriga a vítima a buscar auxílio jurídico em um momento de extrema fragilidade, de acordo com especialistas.

Para Nicole, esse é um dos pontos mais críticos do sistema atual. “Além da violência sofrida, muitas mulheres ou famílias precisam enfrentar sozinhas a burocracia para garantir renda, tratamento e proteção”, afirma. Além disso falta uma previsão legal ou políticas públicas específicas para acompanhamento psicológico contínuo, reabilitação física, cirurgias reparadoras ou prioridade em programas de moradia social, medidas que poderiam ser decisivas para romper o ciclo de violência. “Hoje, o ônus recai quase integralmente sobre as vítimas, que também precisam buscar responsabilização civil do agressor, como indenizações por danos morais, estéticos ou até pensão vitalícia.

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Desamparo

Em um país onde a informalidade ainda é alta e milhões de mulheres não conseguem contribuir regularmente para a Previdência, o desamparo é grande. Por isso, conhecer esses direitos faz diferença entre sobreviver e ficar completamente jogado num limbo. Mais do que números e estatísticas, os casos recentes mostram que o feminicídio não termina no crime. Ele deixa um rastro de consequências econômicas, sociais e emocionais profundas, exigindo respostas mais rápidas, claras e humanas do Estado, na opinião de Nicole.

O Ministério das Mulheres informa que as famílias precisarão atualizar dados nas unidades socioassistenciais, que deverão orientar as famílias para atualizarem as informações do CadÚnico sobre a nova composição familiar, com a ausência da mulher vítima de feminicídio.

A pensão especial deverá ser revisada a cada 2 anos para avaliação da continuidade das condições que lhe deram origem.

Regras e Documentação

Para solicitar a pensão especial, o solicitante deve apresentar:

  • documento pessoal de identificação oficial com foto da criança ou do adolescente ou, na impossibilidade deste, a certidão de nascimento;
  • termo de guarda ou de tutela provisória ou definitiva;
  • requerimento da pensão especial pelo representante legal dos filhos e dependentes da vítima do crime;
  • auto de prisão em flagrante; denúncia, conclusão do inquérito policial; ou decisão judicial. Vale lembrar que é vedado que as crianças e adolescentes sejam representadas pelo autor, coautor ou participante do crime de feminicídio tanto para requerer quanto para administrar o benefício mensal.

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