
Na primeira quinzena de setembro, o mercado de trabalho foi chacoalhado com a notícia de uma demissão em massa em um grande banco baseada no monitoramento da produtividade dos funcionários remotos. Apesar do choque para muitos, o fato é que desde a pandemia, quando todos foram obrigados a trabalhar em home office, as empresas vinham testando ferramentas de controle de produtividade. A grande novidade é que agora, mesmo de volta ao trabalho presencial, o “Big Brother” da produtividade não só continua como vem avançando a passos largos.
As ferramentas de monitoramento evoluíram tanto que hoje em dia é possível saber se o funcionário ligou o computador e só mexeu na barra de espaço ou se trabalhou efetivamente. O avanço dos softwares de acompanhamento está movimentando não apenas o mercado de tecnologia, mas também o de relações de trabalho e compliance. A promessa é de mais produtividade, e as empresas adoraram isso. Mas o impacto econômico e os riscos jurídicos já chamam atenção, segundo especialistas ouvidos pelo InfoMoney.
Conforme levantamento da consultoria Gartner, cerca de 60% das grandes empresas no mundo já utilizam algum tipo de tecnologia para rastrear atividades de empregados e isso deve avançar com tecnologias como inteligência artificial (IA). No Brasil, a prática também já está incorporada em diversos setores.
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Modelo caro
Não é à toa que o mercado global de softwares de produtividade está em franca expansão, devendo faturar mais de R$ 430 bilhões em 2025. Com taxa de crescimento anual estimada em 2%, a receita total desse mercado deve atingir R$ 476,8 bilhões até 2030. O crescimento é impulsionado, principalmente, pelo segmento de softwares de escritório, que sozinho deve movimentar R$ 157 bilhões de faturamento em 2025, conforme dados da plataforma alemã Statista, especializada em estatística e inteligência de mercado.
O modelo, porém, não é barato. Licenças de softwares de vigilância digital custam em média de R$ 50 a R$ 160 por funcionário ao mês, um valor que pressiona os custos de empresas com muitos colaboradores. Para grandes grupos, o gasto pode ser até absorvido, mas para médias e pequenas empresas pode comprometer as já apertadas margens.
Há também efeitos intangíveis, mas relevantes. Estudos da Universidade de Toronto apontam que a produtividade pode cair até 7% em ambientes de alta vigilância, já que o excesso de controle gera estresse e reduz a autonomia do trabalhador. Isso abre um dilema: a empresa gasta mais para monitorar, mas corre o risco de colher menos eficiência.
Risco jurídico
No campo jurídico, os riscos são crescentes. Embora a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) permita fiscalização, abusos podem gerar indenizações por danos morais, além de ações trabalhistas e processos com base na Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD). No caso brasileiro, ainda não há jurisprudência consolidada, mas a tendência é de judicialização à medida que os casos se acumulam.
No exterior, a regulação já começa a reagir. A União Europeia discute limites claros para o chamado “employee surveillance” (ou vigilância de funcionário), com exigência de consentimento e relatórios de impacto. Nos Estados Unidos, alguns estados como Nova York obrigam empresas a notificar formalmente trabalhadores sobre práticas de monitoramento. No Brasil, por enquanto, prevalece a lógica do “fiscalizar primeiro, discutir depois”, mesmo com a incerteza jurídica no ar.
O advogado Fábio Monteiro, especializado em Direito Trabalhista e sócio fundador do Pellegrina e Monteiro, explica, porém, que não há no Direito do Trabalho no Brasil a expectativa de “privacidade absoluta” do empregado no meio-ambiente laboral. É possível o monitoramento não só do local, mas também revistas e meios telemáticos, como e-mails e celulares profissionais. “Outros países, como Portugal, incorporaram suas legislações sobre proteção geral de dados aos códigos trabalhistas, o que não ocorreu ainda no Brasil”, afirma.
Monteiro lembra que o trabalho em home office é visto como uma extensão do meio ambiente de trabalho e o empregador assim como é responsável por garantir as ferramentas de trabalho, seja na residência do funcionário ou na empresa, ele precisa estabelecer regras claras e através de contratos mútuos. “Logo, as métricas de produtividade do empregado, jurídica e estruturalmente subordinado ao poder diretivo do empregador, são passíveis de acompanhamento, porém, sem coleta de informações ou imagens além do ambiente de trabalho.”
Por segurança, o advogado Fabio Chong de Lima, sócio do L.O. Baptista, sempre sugere aos clientes que forneçam os equipamentos aos funcionários justamente para que, do ponto de vista legal, elas tenham o direito de monitorar os equipamentos que elas próprias fornecem. “No entanto, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) exige que o monitoramento seja informado previamente, tenha finalidade legítima e respeite os princípios da transparência, proporcionalidade e necessidade.”
A empresa não pode, por exemplo, acessar mensagens privadas ou dados pessoais sem justificativa legal. A vigilância por vídeo ou áudio no ambiente doméstico do colaborador também é bastante questionável e não recomendável, de acordo com especialistas. “Se esses limites forem extrapolados, o empregado pode solicitar acesso aos dados coletados sobre sua atividade, questionar a metodologia de monitoramento, buscar apoio do sindicato ou assistência jurídica, e até acionar a Justiça do Trabalho”, disse.
De volta ao presencial
Para Stephanie Almeida, do Poliszezuk Advogados, não é porque o funcionário está de volta ao escritório que o monitoramento vai parar. Isso porque acompanhar os passos dos colaboradores não é uma prática exclusiva do trabalho remoto. “A localização do funcionário não altera a capacidade técnica da empresa de fiscalizar o uso do e-mail corporativo, a navegação na internet ou a utilização de programas de trabalho”, afirma.
Almeida lista abaixo os limites de até onde a empresa pode ir e como o colaborador deve proceder, conforme a jurisprudência brasileira, obedecendo a três princípios-chave:
• Princípio da Finalidade: O monitoramento deve ter um objetivo claro e legítimo, como proteção de dados, segurança da informação ou controle de produtividade. Ele não pode ser uma ferramenta de vigilância indiscriminada.
• Princípio da Proporcionalidade: A forma de monitoramento deve ser a menos invasiva possível para atingir a finalidade proposta. Por exemplo, uma empresa pode monitorar o tempo de inatividade para aferir produtividade, mas um registro de cada tecla digitada pode ser considerado excessivo e desproporcional.
• Princípio da Transparência: A empresa deve informar expressamente aos funcionários sobre a existência e a natureza do monitoramento. Isso deve ser feito por meio de um termo de ciência, manual de políticas internas ou aditivo contratual, que o empregado assina e tem conhecimento prévio. A falta de comunicação torna o monitoramento ilegal e o dado coletado sem validade como prova em um processo trabalhista.
Como o colaborador deve proceder?
O primeiro passo é ter pleno conhecimento das regras da empresa, se a política permite o monitoramento, o empregado deve agir ciente de que suas ações no equipamento corporativo podem ser fiscalizadas.
Para evitar conflitos e invasões de privacidade, o empregado deve utilizar os equipamentos e redes da empresa estritamente para fins profissionais. Use seus próprios dispositivos para atividades pessoais.
Se o empregado sentir que houve uma violação de sua privacidade ou que foi monitorado de forma ilegal e sem transparência, ele deve procurar um advogado trabalhista. A violação dos princípios de finalidade, proporcionalidade e transparência pode invalidar a justa causa e até gerar direito a indenização por danos morais.
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Questão de governança
Para especialistas em gestão de pessoas e compliance, o tema precisa sair do campo da tecnologia e ser tratado como questão de governança corporativa. Segundo Sérvulo Mendonça, especialista em gestão e presidente da holding SM, o monitoramento precisa envolver não apensas regras de compliance, mas a LGPD, além da questão ética. “O ponto crítico é saber se o colaborador foi informado e como os dados foram utilizados. Mesmo não sendo ilegal, o monitoramento é um ponto crítico porque pode ter acesso a detalhes pessoais. Mas a máquina é corporativa, então teoricamente só poderia ser utilizada para trabalho”, afirma.
Para a psicóloga Daniele Marques, especialista em gestão de pessoas e diretora executiva da consultoria Protagonist, as empresas apreenderam bem a usar os painéis interativo, os chamados “dashboard”, que exibem um resumo de informações, métricas e indicadores de desempenho (KPIs) de forma clara e consolidada, utilizando gráficos, tabelas e outros elementos visuais para facilitar o monitoramento. “Tudo isso ajuda na análise de dados e a tomada de decisões estratégicas em tempo real, mas também acompanham de perto a produtividade, item essencial para se manterem competitivas no mercado. E esse é um caminho sem volta”, explica a profissional que atua no desenvolvimento de talentos há mais de 20 anos.
O segredo, segundo ela, será combinar tecnologia com a cultura, transformando dados em acompanhamento real com interface humana. “Mensuração é ferramenta estratégica de gestão, apesar das novas gerações terem mais resistência de aceitar essa coisa de comando e controle”, afirma.
Por outro lado, a empresa consegue dar autonomia a quem tem objetivos claros e processos definidos. Com mais dados em mãos, a empresa pode tomar melhores decisões, num universo que hoje é ditado pelos dados, o chamado data-driven. “Porém, é preciso usar essas informações para dar melhores feed backs aos funcionários, com avaliação de trabalho e comportamento de forma clara. Para o funcionário, o lado positivo é que ele deixa de ser avaliado apenas pela visão subjetiva de um chefe e passa a ter números quantificando seu trabalho”, acrescenta.
Para Paulo Castello, CEO da startup de inteligência operacional Fhinck, essa é a grande diferença, porque as empresas passaram a usar dados para tomar decisões mais embasadas, e apenas “por feeling”. “Não se pode rotular as empresas que usam dados como sendo ‘do mal’, porque elas alcançaram uma maturidade digital, usando indicadores para tomar decisões importantes como promoções, planos de carreira e até desligamentos, em alguns casos inevitavelmente. O fato é que a improdutividade foi revelada à luz dos dados”, afirma.
Riscos técnicos
Segundo Thiago Guedes, CEO da DeServ, empresa especializada em segurança da informação e privacidade dos dados, um em cada cinco vazamentos de dados no Brasil não vem de hackers sofisticados em países distantes, mas de dentro da própria empresa. “São funcionários, terceirizados ou até executivos que, de forma maliciosa, acidental ou ingênua, acabam comprometendo informações críticas”, explica. Ele cita ainda dados da Teramind – uma plataforma de análise de comportamento de usuários, otimização de processos de negócios e mitigação de riscos internos – que mostram que 21% das violações de dados têm origem em insiders, e o número de incidentes desse tipo cresceu 44% nos últimos dois anos.
“Esse dado deveria soar como um alerta para grandes corporações, porque além do impacto humano e social, há um risco silencioso. Funcionários desligados abruptamente, sem planos adequados de transição e monitoramento, podem se transformar em ameaças internas latentes”, explica.
A vulnerabilidade não é apenas teórica. O custo médio de uma violação de dados no Brasil já atinge R$ 7,19 milhões, de acordo com estudos feitos pela IBM. “E casos como o da C&M Tecnologia, onde um colaborador aliado a criminosos viabilizou uma fraude bilionária via Pix, mostram que a fronteira entre erro humano e dolo pode ser tênue”, disse.
Fim da ingenuidade
Para o headhunter Diego Rondon, o episódio das demissões do Itaú foi muito importante, porque ele revelou o fim da era da ingenuidade sobre o trabalho, seja ele remoto ou presencial, e o provável início de um novo conflito corporativo. “Sim, a performance importa. Mas ela não pode ser medida apenas por visibilidade ou presença física. Produtividade é resultado de ambiente, clareza, autonomia e liderança real. E onde isso não existe, o colaborador não desliga, ele silencia”, disse.
Para o especialista, isso deve acender um alerta nos conselhos e nas lideranças de todas as empresas, porque a gestão da confiança será o maior desafio da próxima década. “E, se continuar sendo tratada como um problema de vigilância ou política interna, vamos continuar perdendo o que temos de mais raro: gente boa, que pensa, entrega, mas também questiona.”
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