
Há décadas, neuroengenheiros sonham em ajudar pessoas que foram isoladas do mundo da linguagem.
Doenças como a esclerose lateral amiotrófica (ELA) enfraquecem os músculos das vias aéreas. Um AVC pode destruir neurônios que normalmente transmitem comandos para a fala. Talvez, implantando eletrodos, os cientistas possam registrar a atividade elétrica do cérebro e traduzi-la em palavras faladas.
Agora, uma equipe de pesquisadores deu um passo importante rumo a esse objetivo. Anteriormente, eles conseguiram decodificar os sinais produzidos quando as pessoas tentavam falar. No novo estudo, publicado nesta quinta-feira na revista Cell, o computador frequentemente acertava quando os participantes apenas imaginavam dizer palavras.
Christian Herff, neurocientista da Universidade de Maastricht, na Holanda, que não participou da pesquisa, afirmou que o resultado vai além do aspecto tecnológico e lança luz sobre o mistério da linguagem. “É um avanço fantástico”, disse Herff.
O novo estudo é o mais recente resultado de um ensaio clínico de longa duração, chamado BrainGate2, que já apresentou sucessos notáveis. Um dos participantes, Casey Harrell, agora usa sua interface cérebro-máquina para conversar com familiares e amigos.
Em 2023, após a ELA tornar sua voz ininteligível, Harrell aceitou implantar eletrodos em seu cérebro. Cirurgiões colocaram quatro conjuntos de pequenas agulhas no lado esquerdo, em uma região chamada córtex motor, que se ativa quando o cérebro cria comandos para os músculos da fala.
Um computador registrou a atividade elétrica dos implantes enquanto Harrell tentava dizer diferentes palavras. Com o tempo, e com ajuda da inteligência artificial, o computador previu com precisão quase 6 mil palavras, com 97,5% de acerto. Depois, sintetizou essas palavras usando a voz de Harrell, baseada em gravações feitas antes do desenvolvimento da ELA.
Mas esse sucesso levantou uma questão preocupante: o computador poderia registrar mais do que os pacientes realmente queriam dizer? Poderia “escutar” sua voz interior?
“Queríamos investigar se havia risco do sistema decodificar palavras que não deveriam ser ditas em voz alta”, disse Erin Kunz, neurocientista da Universidade de Stanford e autora do estudo. Ela e colegas também se perguntaram se os pacientes prefeririam usar a fala interior, já que Harrell e outros participantes ficavam cansados ao tentar falar; imaginar uma frase poderia ser mais fácil e permitir que o sistema funcionasse mais rápido.
“Se pudéssemos decodificar isso, poderia evitar o esforço físico”, disse Kunz. “Seria menos cansativo, permitindo uso prolongado do sistema.”
Mas não estava claro se os pesquisadores conseguiriam decodificar a fala interior. Na verdade, cientistas nem sequer concordam sobre o que é “fala interior”.

Nossos cérebros produzem linguagem, escolhendo palavras e organizando-as em frases, usando uma rede de regiões do tamanho de um morango grande.
Podemos usar os sinais dessa rede para comandar os músculos a falar, usar linguagem de sinais ou digitar mensagens. Mas muitas pessoas sentem que usam a linguagem para pensar — elas “ouvem” seus pensamentos como uma voz interior.
Alguns pesquisadores defendem que a linguagem é essencial para o pensamento. Outros, baseados em estudos recentes, afirmam que grande parte do pensamento não envolve linguagem e que a voz interior é apenas um comentário esporádico na mente.
“Muita gente não entende quando você diz que tem uma voz interior”, disse Evelina Fedorenko, neurocientista cognitiva do MIT. “Eles pensam: ‘Talvez você devesse procurar um médico se está ouvindo palavras na cabeça.’” (Fedorenko disse que tem voz interior, mas o marido dela não.)
Kunz e colegas decidiram investigar o mistério. Deram aos participantes sete palavras, como “pipa” e “dia”, e compararam os sinais cerebrais quando tentavam dizer as palavras e quando apenas as imaginavam.
Imaginar uma palavra produzia um padrão de atividade semelhante ao de tentar dizê-la, mas com sinal mais fraco. O computador conseguiu prever qual das sete palavras os participantes pensavam. Para Harrell, o resultado não foi muito melhor que um palpite aleatório, mas para outro participante, o acerto foi superior a 70%.
Os pesquisadores treinaram o computador especificamente para a fala interior, melhorando seu desempenho, inclusive para Harrell. Quando os participantes imaginavam frases inteiras, como “Não sei há quanto tempo você está aqui”, o computador decodificava a maioria ou todas as palavras corretamente.
Herff, que também estuda fala interior, ficou surpreso com o sucesso. Antes, ele acreditava que a fala interior era fundamentalmente diferente dos sinais do córtex motor que produzem a fala real. “Mas neste estudo, eles mostram que, para algumas pessoas, não é tão diferente assim”, disse.
Kunz ressaltou que o desempenho atual do computador com fala interior ainda não é suficiente para conversas. “Os resultados são mais uma prova de conceito”, disse.
Mas ela está otimista que decodificar a fala interior será o padrão para interfaces cérebro-computador. Em testes mais recentes, ainda não publicados, a precisão e velocidade melhoraram. “Ainda não chegamos ao limite”, afirmou.
Quanto à privacidade mental, Kunz e colegas encontraram motivos para preocupação: às vezes, o computador detectava palavras que os participantes não imaginavam em voz alta.
Em um teste, os participantes contavam mentalmente formas coloridas na tela. O computador decodificou a palavra para um número, “ouvindo” a contagem silenciosa.
“Esses experimentos são os mais empolgantes para mim”, disse Herff, pois sugerem que a linguagem pode estar envolvida em muitos tipos de pensamento além da comunicação. “Algumas pessoas realmente pensam assim.”
Kunz e equipe propuseram formas de evitar que o computador “escute” pensamentos privados. Uma seria decodificar apenas a fala tentada, bloqueando a interior. O estudo sugere que isso é possível, pois os dois tipos de pensamento são semelhantes, mas diferentes o suficiente para o computador distingui-los.
Para quem preferir usar a fala interior para se comunicar, eles sugeriram uma “senha interior” para ativar e desativar a decodificação. A senha seria uma frase longa e incomum, escolhida como “Chitty Chitty Bang Bang”, título de um livro e filme.
Uma participante de 68 anos com ELA imaginou dizer “Chitty Chitty Bang Bang” junto com outras palavras. O computador aprendeu a reconhecer a senha com 98,75% de precisão e só decodificava a fala interior após detectá-la.
“Este estudo é um avanço ético importante”, disse Cohen Marcus Lionel Brown, bioeticista da Universidade de Wollongong, Austrália. “Se implementado corretamente, dará aos pacientes maior controle sobre o que compartilham e quando.”
Fedorenko, que não participou do estudo, chamou-o de “tour de force metodológico”, mas questionou se um implante poderia “escutar” muitos de nossos pensamentos. Ela destacou que o computador teve bom desempenho ao decodificar palavras imaginadas, mas pior em comandos abertos, como pensar em um hobby favorito.
“O que eles gravam é, na maior parte, lixo”, disse. “Acho que muito do pensamento espontâneo não é formado em frases linguísticas.”
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